Plágios, coincidências e Homenagens
Aparício Fernandes
Quem assina ou apresenta como seu um trabalho literário, artístico ou científico de outrem, ou ainda quem imita servilmente um trabalho alheio, está cometendo plágio. Para que haja plágio real, é preciso que o plagiário conheça a obra que plagia e tenha a consciência e o propósito de plagiar. É claro, porém, que a subjetividade desses requisitos é relativa, pois toda inocência tem limites.
No mundo trovadoresco o plágio é bastante raro, embora não se possa dizer que não existe. Parodiando um velho ditado, pode-se dizer que "o plágio não compensa", principalmente porque — e aqui entra outro ditado — "mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo". Além de inescrupuloso, o plagiário é quase sempre um tolo, quando pensa que pode escapar à censura pública. A propósito do plágio, Rodrigues Crespo ironiza:
Originário de um surto
de inspiração impudica,
o plágio é o único furto
que o próprio ladrão publica.
Elza Meireles Chola acrescenta:
Diz ser grande trovador,
mas, veja que coisa feia:
para ter algum valor,
inspira-se em trova alheia...
E Esmeraldo Siqueira comenta:
Larápios de mil padrões
há neste mundo dispersos.
Até conheço ladrões
que roubam frases e versos...
De minha parte, acrescento:
Sendo o verso um filho da alma,
quem plagia — é sugestivo —
cinicamente ressalva:
— Sou pai de um filho... adotivo!
Há também a história daquele sujeito que copiou alguns versos de um grande poeta brasileiro, assinou-os com o seu próprio nome e foi pedir a opinião de um crítico sobre a "sua" poesia. Este não perdeu a calma:
— Os versos estão ótimos! Mas eu pensava que o senhor já havia morrido, meu caro Gonçalves Dias!...
Certa vez — e não é anedota - participávamos de uma festa de trovadores no Clube Olímpico de Jacarepaguá, quando se aproximou um "poeta" que, folheando um volumoso caderno, insistiu comigo para que escutasse algumas de suas poesias, dando a seguir o meu parecer. Quem vai a uma festa quer é se divertir e confraternizar com os amigos, e não servir de juiz para extensas peças declamatórias, mormente levando-se em conta que o autor, antecipadamente, já conta com a nossa entusiástica aprovação. Todavia, para não magoar o "confrade", disfarcei meu desapontamento, muni-me de paciência e me dispus a escutá-lo. Depois de pigarrear, o "poeta" decidiu-se:
— Veja esta, por exemplo! E passou a declamar:
Oh! Que saudades que eu tenho
da aurora de minha vida,
da minha infância querida
que os anos não trazem mais!...
— Espere aí, meu caro! Esta é uma das mais famosas poesias de Casimiro de Abreu! Ao que ele retrucou:
— Tenha calma! Você não me deixou acabar! isto é apenas para começar a poesia, depois eu continuo com versos de minha autoria.
De fato, continuou. E que versos, meu irmão! Raros eram aqueles onde se poderia adivinhar a rima ou a métrica. Terminado o suplício, o "colega" encarou-me com ar de vitória:
— Então, que achou? E eu tive de ser sincero:
— Achei uma maravilha aquela parte de Casimiro de Abreu, o resto é que precisa de algumas retificações... Mas não desanime, que o seu parceiro é ótimo.
O azar dos plagiadores é que ninguém plagia uma porcaria. E o que é "digno de se plagiar" é também quase sempre, pelos mesmos motivos, sobejamente
conhecido; assim, torna-se fácil identificar o plágio. No que se refere à Trova, o registro de uma infinidade de quadrinhas nas inúmeras antologias, coletâneas e livros de trovas torna cada vez mais ingrata a vocação do plagiador. Por mais esperto que ele se julgue, mais cedo ou mais tarde é sempre desmascarado.
Alguns ouvintes do nosso programa radiofônico de trovas ingenuamente nos enviavam trovas famosas, de autores conhecidos, omitindo os nomes desses autores e afirmando: "trovas de minha própria autoria". Outros intercalavam essas trovas entre quadras de pé-quebrado (estas últimas realmente de autoria do remetente) e tentavam burlar nossa vigilância, como se não soubéssemos distinguir entre uma trova antológica e outra feita por quem não possui qualquer noção de regras poéticas. Evidentemente essas ocorrências não geram problemas, são inconsequentes e até mesmo pitorescas. Mas, embora raros, há casos menos inocentes, de trovadores que tentam plagiar as produções alheias. Poderíamos citar alguns exemplos, o que não faremos, na esperança de que alguns poucos plagiadores intencionais venham a se reabilitar.
Abordaremos apenas, a título de “ilustração”, o plágio não de uma trova, mas de uma coletânea de trovas. Em 1956, Luiz Otávio publicou, pela Editora Vecchi, a coletânea "Meus Irmãos, os Trovadores", contendo 2.000 trovas de cerca de 600 autores. Em 1963, isto é, sete anos depois, um tal de Pandiá Pându publicou, através da Technoprint Gráfica S. A. uma antologia de trovas sob o título de "Tesouro das 1.000 melhores quadrinhas brasileiras de amor e saudade", do tipo livro de bolso. Examinando esse livro, qualquer
pessoa que se dispuser a fazer uma pequena pesquisa constatará que a "obra" do sr. Pandiá Pându se resumiu em copiar trovas da coletânea de Luiz Otávio,
publicando-as com outra capa e com os dizeres "selecionadas por Pandiá Pându". Evidentemente, restringindo-se a "sua" antologia às trovas de amor e saudade, limitou-se a copiar de "Meus Irmãos, os Trovadores" as trovas que versavam sobre estes temas. As trovas que Luiz Otávio incluiu em sua coletânea podiam e podem ser publicadas em outros livros, organizados por outros autores. Mas, daí a admitir-se que um sujeito pode, copiando, publicar um livro quase que exclusivamente baseado no trabalho honesto de outro antologista, vai uma grande distância.
Várias são as evidências do plágio do sr. Pandiá, evidências estas que, reunidas, formam um esmagador conjunto de provas circunstanciais contra o referido indivíduo. Senão vejamos:
1 — Das 1.000 trovas publicadas no livro "Quadrinhas Brasileiras de Amor e Saudade", 923, ou seja 92,3%, foram extraídas de "Meus Irmãos, os Trovadores". Considerando-se que em nosso país circulam centenas de milhares de trovas, é duro de engolir esta "coincidência". Das 77 trovas restantes, com as quais o sr. Pandiá pretendeu disfarçar o seu plágio, 36 são de autoria de um tal Arthur Bispo, nome totalmente desconhecido nos meios trovadorescos. Nem podia ser de outra forma, pois as "trovas" do sr. Arthur Bispo são uma verdadeira calamidade! Com todos os erros, inclusive de métrica, e o mau gosto característico, eis uma das quadrinhas do referido autor, incluídas por Pandiá Pându no seu "tesouro antológico" de trovas :
Inutilmente vivo a implorar-te,
Uma simples migalha do meu amor,
Desejo loucamente poder encontrar-te,
E tu finges desconhecer, que amargor.
É realmente um amargor... Temos as nossas desconfianças de que Arthur Bispo é o nome verdadeiro do sr. Pandiá Pându, ou vice-versa, ou talvez se trate de dois pseudônimos da mesma pessoa. Provavelmente o sr. Pandiá, na qualidade de antologista, quis mostrar que entendia do assunto e provou exatamente o contrário.
2 — 167 trovadores possuem apenas uma trova em "Meus Irmãos, os Trovadores"; pois bem, todos esses autores figuram com a mesma trova no livro do sr. Pandiá. 69 trovadores que possuem duas trovas no livro de Luiz Otávio figuram com uma delas no livro do plagiário. E assim por diante... Repetimos: não é "coincidência" demais?
3 — Luiz Otávio é um dos mais conhecidos e divulgados trovadores brasileiros. Todavia, como resolveu não incluir trovas de sua autoria na coletânea "Meus Irmãos, os Trovadores", também no livro do sr. Pandiá Pându não figuram trovas de Luiz Otávio.
4 — Entre a publicação do livro de Luiz Otávio, em 1956, e o aparecimento do livro do sr. Pându, em 1963, verificou-se um extraordinário surto trovadoresco, que ocasionou o aparecimento de notáveis trovadores, muitos deles consagrados com repetidas vitórias em jogos florais e outros concursos de trovas, amplamente divulgados na imprensa. Seria mais do que natural que no livro do sr. Pandiá Pându figurassem pelo menos alguns desses trovadores, o que não ocorre.
5 — No livro de Luiz Otávio, por um lapso, foi publicado erroneamente o nome de determinado trovador. Por uma assombrosa "coincidência", o mesmo erro se repete no livro "Quadrinhas Brasileiras de Amor e Saudade".
6 — Finalmente, apesar de algumas manobras de despistamento, a sequência, isto é, a ordem em que aparecem as trovas no livro do sr. Pandiá Pându é a mesma que Luiz Otávio observou em sua coletânea. O plagiário nem ao menos se deu ao trabalho de embaralhá-las.
No livro "Quadrinhas Brasileiras de Amor e Saudade" o "antologista" não faz qualquer estudo ou ensaio sobre a Trova, nem mesmo um singelo prefácio ou apresentação. Limitou-se a publicar as trovas copiadas de "Meus Irmãos, os Trovadores". Aliás, não se poderia mesmo esperar outra coisa, pois em matéria de trovas o sr. Pandiá Pându é totalmente analfabeto. O que é de se lamentar — e muito — é que um indivíduo nestas condições consiga o patrocínio de uma editora, quando tantos outros trabalhos, valiosos e honestos, de autores que realmente entendem e amam a Trova, permanecem inéditos por falta de editor. A Technoprint, no caso, é a menos culpada. Apenas teve o azar — e a imprudência — de confiar num plagiador.
A ideia de plágio tem atormentado muitos trovadores, temerosos de nele incorrerem, mesmo involuntariamente. Tal receio é infundado, embora seja louvável uma certa precaução. Como já dissemos, o plágio verdadeiro, proposital, é raro. O que ocorre com certa frequência são os plágios involuntários, bem como as coincidências de ideias ou de forma.
O plágio involuntário ou Inconsciente é motivado quase sempre por antigas leituras, que ficam no subconsciente, e cuja ideia ou estrutura eventualmente vêm à tona, traindo o trovador, que pensa estar escrevendo algo original quando, na realidade, está apenas passando para o papel uma ideia ou forma de outro autor, das quais tomou conhecimento (e gostou) mas, conscientemente, não se recorda. Certa vez, fiz a seguinte trova, que, na ocasião, julgávamos original:
No seu bramir incessante,
as ondas fazem lembrar
o delírio soluçante
dos que morreram no mar!
Qual não foi a nossa surpresa quando, relendo o livro "Cantigas do Entardecer", de Leonardo Henke, deparamo-nos com esta trova do poeta paranaense:
O choro triste e constante
das ondas a soluçar
parece a voz suplicante
dos que morreram no mar.
Alguns anos antes havíamos tido o livro de Leonardo, ficando esta trova em nosso subconsciente, o qual veio a nos trair, induzindo-nos a um plágio involuntário. Constatado o mesmo, retiramos imediatamente a "nossa" trova da circulação. Por sorte, ainda estava inédita, tendo sido divulgada apenas uma vez, se não nos falha a memória, num programa de rádio.
Devido à coincidência de ideia ou de forma, frequentemente encontramos trovas bastante semelhantes, sob um desses dois aspectos, sem que isto implique forçosamente na existência de plágio. No que se refere à mensagem, à ideia, a própria trova de Leonardo Henke, já citada, apresenta semelhança com esta outra, bem mais antiga, de uma velhinha rezadeira, conhecida como Tia Chica, que residia em Ubatuba, na Ilha de São Francisco, e que, por volta de 1926, já contava mais de 70 anos de idade:
As almas dos pescadores
engolidos pelo mar
gemem no casco dos barcos
que vão ao largo pescar.
Às vezes dá-se o inverso: a mensagem é diferente, mas há semelhança na forma, ou seja, na estrutura da trova, no ritmo ou até mesmo em algumas palavras que a compõem. Eis duas trovas que, se comparadas, apresentam estas características, sem que, no entanto, tenha ocorrido plágio: coincidência interessante é que a primeira classificou-se em 6.° lugar, nos I Jogos Florais de Santos, realizados em 1964, e a segunda conseguiu também a 6ª colocação, nos VI Jogos Florais de Nova Friburgo, em 1965:
De Aparício Fernandes:
Alta noite, adormecida,
parece a praia encerrar
todo o mistério da vida,
toda a poesia do mar.
De Aristheu Bulhões:
Na mulher se consolida
um destino encantador:
todo o milagre da vida,
todo o mistério do amor.
São duas trovas que apenas têm, entre si, pontos de contato no que se refere à estrutura. O mesmo pode ocorrer com relação à mensagem.
Inúmeras trovas são parecidas, sem que haja plágio. Mormente quando a semelhança que as aproxima encerra ideias comuns, repetidamente exploradas, ou expressões e frases de uso corriqueiro. Somente quando duas trovas apresentam grande semelhança não só na mensagem ou tema, como também na forma ou estrutura, é provável que tenha havido plágio, consciente ou involuntário. Ainda com referência à simples coincidência de inspiração, citaremos um caso bem interessante. Em nosso primeiro livro, "Sonho Azul", publicado em 1961, figura esta quadra:
Quando vem o anoitecer.
foge do céu toda a luz,
para vir adormecer
nesses teus olhos azuis...
Recentemente chegou-nos às mãos esta outra trova, do poeta Vicente Maya, residente no longínquo Maranhão, e que provavelmente desconhecia a quadrinha acima citada:
Cai a noite. E a luz da tarde,
das trevas temendo escolhos,
contraiu-se, sem alarde,
e foi dormir nos teus olhos.
Como se vê, a mensagem das duas trovas é praticamente a mesma, embora as estruturas sejam completamente diferentes. Plágio? Não. Simples coincidência de Inspiração, que muito honra o autor destas linhas. Tanto isto é verdade, que, há tempos, escrevi ainda esta outra trova, a qual permanece
Inédita (até agora, é claro) e jamais foi divulgada pelo rádio:
Com muita sabedoria,
para livrá-la de escolhos,
Deus escondeu a Poesia
nas meninas dos teus olhos.
Nem o poeta Vicente Maya poderia conhecer esta trova, nem eu conhecia a dele; no entanto, por uma coincidência de inspiração, ambos achamos que os olhos de nossas respectivas amadas eram um bom refúgio contra possíveis escolhos.
É muito comum acontecer o aproveitamento de ditados populares numa trova. Também aí não há plágio, apenas a trova se desvaloriza um pouco, no que se refere à autoria, pois, de seus quatro versos, um, pelo menos, não pertence ao trovador. Fiz esta quadrinha para exemplificar:
"Quem espera, sempre alcança"
— não creio nisto, porque
já perdi toda a esperança,
de tanto esperar você!
Alguns trovadores, de vez em quando, aproveitam anedotas, ditos e frases populares, ou ainda slogans de propaganda, para espertamente transformá-los em trovas. Para exemplificar, fiz, de propósito, esta quadrinha:
Dois peixinhos, conversando,
ponderavam muito aflitos:
Do jeito que estão pescando,
ai, meu Deus, estamos fritos!
Inspiração própria? Não. Apenas baseei-me num cartaz da SUDEPE — Superintendência de Pesca, que representa um diálogo de dois peixinhos, Um deles diz: "Todo mundo está pescando", E o outro responde: "Estamos fritos!"
A questão do plágio tem gerado muitas fofocas e até mesmo algumas inimizades. Nisto, porém, como em tudo na vida, um pouco de humildade não faz mal a ninguém. Conhecemos um trovador que, certa vez, achando que outro autor havia plagiado uma de suas trovas, ficou contrariado e resolveu fazer uma pesquisa, para mais esmagadoramente desmascarar o "plagiador". Feita a pesquisa, sofreu a tremenda decepção de verificar que a trova do tal ―plagiador - era muito anterior à dele, inclusive em publicação!
Como não pode haver plágio retroativo... O mais engraçado é que, depois disto, o nosso herói não retirou de circulação a sua trova. Provavelmente, vendo que a do outro era mais antiga, resolveu achar que as trovas já não eram parecidas. Que coerência...
Caso curioso, original e único, é a famosa "homenagem" que o trovador Petrarca Maranhão fez ao seu colega Newton Rossi. Não se enquadra como coincidência, porque foi intencional; nem, tampouco, como plágio, pois, segundo o Petrarca, a intenção era até bastante louvável. O fato ocorreu por volta de 1953. Newton Rossi, que na época residia em Belo Horizonte (depois em Brasília), é o autor da seguinte trova:
No "sobe-desce" da vida,
quem tal verdade não viu?
— Às vezes, sobe quem desce...
desce tanto quem subiu...
De repente o Petrarca faz e publica esta quadrinha:
No perde-ganha da vida,
(quem isto não percebeu?!)
— Às vezes, perde quem ganha...
outras, ganha quem perdeu...
Newton Rossi ficou furioso. Encontrando-se com Luiz Otávio em Belo Horizonte, desabafou:
— Você viu o que o Petrarca fez? Publicou uma verdadeira paródia da minha trova! Isto não está direito! O pior é que depois muita gente pode pensar que a minha trova é que é baseada na dele. — E pediu: — Por favor, Luiz Otávio, se encontrar o Petrarca, diga-lhe que fiquei muito chateado com a atitude dele.
Regressando ao Rio, Luiz Otávio deu o recado:
— Olha, Petrarca, o Newton Rossi está aborrecido com você. Diz que a sua trova é apenas uma variante da dele. Petrarca mostrou-se surpreso e pesaroso:
— Não é possível! Logo o Newton, um rapaz que eu tanto admiro! É claro que eu conhecia a trova dele, que, por sinal, é muito bonita. Ao fazer a minha trova, quis apenas prestar-lhe uma homenagem. Lamento não ter sido bem compreendido.
Luiz Otávio transmitiu a explicação do Petrarca ao Newton Rossi, tendo este concluído:
— Diga ao Petrarca que eu agradeço muito a boa intenção dele, mas dispenso esta espécie de homenagem.
Felizmente, "entre mortos e feridos", todos escaparam...
Fonte: Florilégio de Trovas, nº 22 e 23 de 2018, de José Feldmann. Publicado originalmente em A trova no Brasil: história/antologia, de Aparício Fernandes.